Saúde pública: como funciona o NHS, o “SUS” britânico

Sistema que inspirou serviço brasileiro não vive seus melhores dias, mas surpreende pela organização e dedicação
Trem com faixa de apoio ao NHS, o sistema público de saúde britânico (Mick Baker)

Tenho lido muitos textos sobre a importância do SUS, o Sistema Unificado de Saúde, nesses tempos de pandemia do coronavírus. Para quem vê o país de fora, a impressão é que o serviço público tem suportado grande parte dos casos de internação no Brasil, com a ajuda de algumas entidades privadas também. Isso tem motivado muita gente a defender o sistema, que poderia oferecer saúde universal para todos os brasileiros, algo que sabemos ser bastante difícil, diante das restrições orçamentárias.

Mas para quem utilizou o setor privado até pouco mais de um ano atrás e hoje depende do serviço público de saúde britânico, o famoso NHS (e que inspirou o SUS), essa mudança seria bem-vinda. Em que pese as constantes reclamações de que o NHS já foi melhor e que carece de investimento, não posso reclamar até hoje do atendimento que recebemos desde que chegamos ao Reino Unido.

Trata-se de uma revisão de conceitos enorme, aliás. No Brasil, estávamos dependentes de planos de saúde privados há muitos anos e até recentemente a Renata usufruía de um ótimo convênio médico na empresa em que trabalhava, que dava direito a atendimento pelos hospitais Sírio Libanês e Albert Einstein. Foi neste último, inclusive, que recorri após uma crise de arritmia bastante séria há três anos.

O atendimento tanto do pronto-socorro quanto da ala cardíaca do Einstein foi primoroso, há de se reconhecer. No entanto, semanas após a alta recebi uma ligação da área financeira do hospital que pleiteava o pagamento de um valor elevado por conta de minha esposa “ter consentido” com o atendimento por um cardiologista que não fazia parte do nosso convênio. Sim, para minha surpresa nosso plano de saúde não incluía o Einstein como um todo, mas apenas atendimento com determinados médicos. Na realidade, a pessoa que deveria ter avisado sobre isso durante a internação não o fez e o hospital acabou arcando com o custo, felizmente. Mas foi um episódio que ilustrou como nunca como dependemos de um bom convênio médico no Brasil, geralmente associado à um grande empregador.

É uma situação extremamente instável porque de uma hora para outra você pode ficar desamparado. E a razão para isso é que, por melhor que seja o SUS, ele está sobrecarregado. Se a grande maioria dos brasileiros resolvesse buscar atendimento público não haveria como dar conta da demanda. O que nos deixa à mercê de planos de saúde ruins, bastante restritivos e caros.

Hopsital Albert Einstein: atendimento impecável, mas quase pagamos por algo que fazia parte do convênio (Divulgação)

Apenas o indispensável

A saúde pública e universal foi um dos motivos da nossa mudança para a Europa. Temíamos chegar a um ponto em que gastaríamos muito dinheiro para manter um convênio apenas razoável e que poderia nos deixar na mão em uma situação adversa. Conhecíamos histórias de amigos que passaram por longas disputas jurídicas para obter tratamento de planos com cláusulas obscuras, justamente em momentos delicados e frágeis, daí o pensamento de que saúde, assim como educação, não poderiam ser preocupações estando ou não empregados.

Sem dúvida, adaptar-se à rotina de saúde de outro país é um dos pontos mais cruciais para um imigrante, ainda mais saindo do privado para o público. Lembro bem de uma ocasião em que levamos nossas filhas para tomar uma vacina em uma clínica particular indicada pelo convênio. O ambiente lúdico, com direito à tema de Pernalonga, buscava criar uma atmosfera mais leve para um momento traumático para qualquer criança. Muito bacana, mas certamente dispendioso.

Aqui em Londres, quando surgiu a necessidade de receber uma dose de vacina, o posto público, bastante simples, foi objetivo para resolver a relutância dos pequenos, um produto anestésico no local da aplicação da agulha e pronto, vacina aplicada sem dor. Nenhuma distração, apenas foco no que importa.

Talvez seja essa uma das grandes diferenças de um sistema público de saúde, a objetividade. O que não é importante fica em segundo plano, como a própria estética de hospitais e clínicas, bastante desgastados com o tempo. No entanto, os itens e equipamentos necessários são adequados e os médicos e enfermeiros, atenciosos.

Mas não se atreva a quebrar o processo instituído por eles. No Reino Unido, existem os GPs (General Practice), clínicas de bairro onde são feitas as primeiras consultas. Você se cadastra na unidade mais próxima e é lá que você será sempre atendido e direcionado para um especialista se necessário. Até mesmo em caso de um problema leve como febre constante é preciso passar pelo clínico geral, ao contrário do Brasil onde já corríamos para o pronto-socorro de um hospital. Aliás, fizemos isso uma vez e acabamos não sendo atendidos, é claro.

Quarentena muda tudo

O NHS só dá conta do recado porque os britânicos são muito claros em relação aos problemas de saúde. Febres, viroses e doenças rotineiras não motivam a atendimentos presenciais a não ser que se tornem mais complicados de fato. Há muita informação útil no site do sistema e orientações para que você possa acompanhar a evolução do seu quadro, bem diferente de pronto-socorros brasileiros em que a qualquer gripe ou resfriado lhe prescrevem antibióticos.

Isso não significa que o sistema só lhe atenda em situações extremas ou que seja econômico nos tratamentos. Para nossa surpresa, a Renata realizou um exame genético para determinar as causas de seu nível elevado de colesterol e que no Brasil era negado pelos convênios ou custava muito caro. Em outras palavras, a meta aqui é prevenir para não criar problemas futuros.

Atendimento no SUS: sistema público de saúde brasileiro precisa de mais recursos (GF)

Outros aspectos que nos chamaram a atenção é que hospitais privados também atendem pelo NHS, sem que haja uma diferença de tratamento, e a medicação é gratuita até os 16 anos de idade. Mesmo para quem é mais velho, há um limite de nove libras (R$ 57 reais em junho de 2020) a ser pago por qualquer medicamento. E isso caso você se considere apto a pagar já que se puder comprovar uma renda baixa o remédio não será cobrado.

E não estamos falando de farmácias populares como no Brasil, em que faltam remédios muitas vezes. O NHS trabalha em parceria com as redes privadas como a Boots, que fazem a intermediação com os pacientes.

Claro, nem tudo são flores. Como qualquer sistema público, há problemas com burocracia. Nossa filha mais nova, por exemplo, precisou passar com um especialista para dar sequência a um tratamento iniciado no Brasil, porém, esperamos mais de um mês para conseguir a consulta com ele, mesmo com a ajuda da clínica geral.

A pandemia do coronavírus colocou o NHS de cabeça para baixo, como em outros países. Qualquer cirurgia eletiva ou tratamento corriqueiro ficou em segundo plano com as restrições de atendimento impostas. É compreensível, claro, mas algo que num plano privado poderia ser contornado.

Apesar disso, o NHS segue como um orgulho nacional para os britânicos. Inúmeras residências aqui exibem desenhos de arco-íris e mensagens de apoio para seus funcionários, que são considerados heróis nesses dias turbulentos. Algo que notei no Brasil também, mas em menor escala.

Esperar o SUS tenha o mesmo valor para os brasileiros pode soar como utopia, mas me parece um caminho sem volta se um dia nosso país quiser reduzir as imensas desigualdades que afligem a população. Para isso, é preciso não só de recursos, mas de organização, informação e bom senso. Todos ganhariam, até mesmo quem só utiliza um Einstein ou Sírio.

Jornalista do setor automotivo desde 2001, tenta ajudar no que pode no dia a dia dos filhos, apesar de já ter até derretido mamadeira esquecida na panela. Publisher dos sites Autoo, Airway e MetrôCPTM.

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1 Response

  1. Gabriel Paiva disse:

    Muito legal seu texto Ricardo! O Brasil ainda tem muito a evoluir com o SUS mas já avançou bastante também, poderia ter aumentado ainda mais sua cobertura não fosse o constante subfinanciamento, mas mesmo assim somos o único país de tamanho continental a propor saúde pública a todos os seus 200 mi de habitantes, dos quais 80% deles são exclusivamente dependentes do SUS, o que acaba sendo um desafio a mais para a gestão do sistema. Como alcançar as pessoas e suprir todas as suas necessidades de saúde com serviços e profissionais de qualidade lá no Oiapoque? Ou lá na comunidade ribeirinha do Amazonas? Ou lá no sertão nordestino? Perguntas que a maiores dos governadores não querem responder… Como você disse, precisamos deslocar o foco da saúde curativa para a saúde preventiva e por isso as UBS (Unidades Básicas de Saúde), nossas General Pratices, tem papel fundamental na promoção da saúde e rastreio e manejo de doenças crônicas, mas infelizmente está tudo sobrecarregado demais… A mentalidade da população sobre o tamanho e a importância do SUS tem que mudar para o desejo não seja pagar um bom plano de saúde privado, mas assim cobrar por uma melhor financiamento e boa gestão do sistema público.